Capítulo II

Marca de Nascença


“Somos um resto do navio negreiro que aportou em Itacaré”, disse Seu Carmo em sua história oral, que afirma ser herança deixada por seus antepassados, ressoando a voz sobre o silêncio daquela noite tranqüila no povoado.  Numa postura leve, outrora cansada, Carmo contou que os cativos oriundos da África, escravos no navio negreiro aportado em Itacaré, eram então libertos, uma vez que fugiram. “Fugiram porque sentiram que estavam sendo enganados. Porque a intenção era descer em Salvador, mas isso não aconteceu. Os que fugiram do navio e que conseguiram nadar, se salvar das águas e da maré, quando chegaram lá (em Itacaré), saíram na boca do rio das Contas, e seguiram o trajeto não sei por quanto tempo, não dá pra saber”, conta. Esse grupo teria vindo a se instalar na Chapada Diamantina próximo ao município de Tanhaçu, segundo ele, no encontro do rio das Contas com o rio Brumado. Mas até que esse grupo se tornasse realmente “livre”, muita água correu por aqueles rios até que isso se tornasse uma realidade.


Estudo dos sociólogos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcos Messeder e Marco Martins, intitulado de “Arraiais de Rio de Contas: Uma comunidade de cor” revelam que o processo de ocupação desta área por um contingente negro continua impreciso, mas que de acordo com levantamentos genealógicos, “a ocupação de Barra e Bananal remonta, à pelo menos, no mínimo, 130 anos”, embora pudessem ser há mais de 300 anos, mas devido à falta de registros não é possível precisar em data. “Do passado a gente não sabe, a gente não sabe quando começou a comunidade. Como a história não foi escrita, não dá pra guardar... A família está ligada a um tal de Isidro José da Silva, um senhor, e todos nós viemos dessa família”, relatou o líder. Os próprios sociólogos mediante pesquisa com os arraiados verificam a incidência de que “os primeiros habitantes teriam se instalado ali clandestinamente, fugidos, quem sabe, das minas próximas, e assegurado a integridade física através de um acordo de não delação, firmado com garimpeiros ilegais”. Segundo o líder Carmo, o provedor Isidro José da Silva teria vindo fugido de Lavras, dum possível lugar chamado de “Brotas de Macaúbas”, conforme relatos de parentes que já morreram. “Tem dois lugares da Chapada com esse nome, não sabemos”, conta. Isidro casou-se com Sofia Maria dos Rosários “e a partir daí tiveram os filhos, e os filhos foram modificando, todas as três comunidades tiveram a mesma origem, é a mesma família. Cada grupinho ficou num lugar”, diz Carmo. Os estudos dizem que a história dos membros quilombolas está associada à economia de subsistência agrícola, com migrações masculinas temporárias.

ESCRAVIDÃO

As duas comunidades nitidamente distintas pela etnia constituíram no passado dois traços da colonização portuguesa. De um lado, portugueses, homens de poder e riquezas. Do outro, negros fugitivos que, segundo Carmo, “foram obrigados a trabalhar em Mato Grosso, que ainda não existia”. Ele afirma que seu povo teria sido escravizado pelos bandeirantes e portugueses que lá chegaram, para servirem de mão-de-obra e trabalharem principalmente no erguimento da vila de Mato Grosso.

“A Igreja, eu sei que, pelo o que meu pai contava sobre as coisas passadas da história, a Igreja foi construída pelos escravos”, disse entre pausas o descendente português da tradicional família Mafra, Seu Albertino Oliveira Mafra, de 73 anos, sobre a Igreja de Santo Antônio do Mato Grosso.



- Ela foi construída pelo pessoal de Barra e de Bananal? A pergunta incômoda saía tímida, mas necessária para um democrático trabalho na audição das fontes.

- A gente sabe que não, que foi construída pelo pessoal de fora, respondeu esse senhor de olhos verdes acastanhados.

“Todo negro para se manter, tinha que garimpar. Garimpava e vendia o ouro em Mato Grosso. E era muito difícil porque o que conseguia num dia, vendia pra comer no outro. E só dava pra isso: cada dia tinha que ir em Mato Grosso vender o ouro para comer no outro dia. O ouro tirava hoje, comia amanhã”, conta Seu Carmo a sua história oral sobre os tempos de garimpo, que teria sido transmitida por seus antepassados.
Por outro lado, só no período de agosto de 1714 a julho de 1715, a Bahia recebeu 3.435 escravos, dados demonstrados na dissertação “Os livres pobres sem patrão nas Minas do Rio das Contas”, da historiadora Nanci Lima (UFBA). As principais minas baianas, como a de Rio de Contas, absorveram essa demanda justamente pela estrutura produtiva que se apoiava no trabalho escravo.
O próprio Vice-Rei, D. Vasco Fernandes, de acordo com dados de estudos historiográficos, teria admitido a total dependência da economia com o mercado de escravos, informando que entre 10 mil e 20 mil escravos eram importados por ano pela Bahia, sendo ainda insuficiente para suprir as lavouras e a mineração. Esses dados de pesquisas revelam como o comércio de cativos para as minas representou uma forte relação com o tráfico negreiro, havendo um grande crescimento do fluxo com o continente africano entre os países principalmente de Moçambique, Haussá, Congo, Benguela, Angola, Mina e Cabinda.
No entanto, embora a circulação de cativos se desse por vários espaços sociais, muitos grupos de negros “foram constituídos por escravos nascidos e criados nas próprias vilas e adjacências” é o que revela a obra “O Crime na Cor: Escravos e Forros no Alto Sertão da Bahia (1830-1888)”, da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). 

Essas informações foram originadas através da leitura dos processos que auxiliam na reconstituição de elementos da vida escrava na região, a mostrar que os escravos ou os livres,tanto testemunhas como réus, declaravam que se “conheciam desde há muito tempo”, “desde que era muito pequeno”, ou ainda, “desde que teve uso da razão”.

Tais dados não descartam os relatos nem de Seu Carmo, o líder quilombola, nem de Seu Albertino Mafra, morador de Mato Grosso. A herança da história oral deixada pelos antepassados desses dois distintos povoados, seguido dos relatos dos atuais membros vivos, remonta duas direções, que por vezes se cruzam em pontos opostos, ora se complementam com o outro. Reflexos de um Contexto Histórico bastante agitado.




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