Capítulo VI

Quilombo hoje, diretamente para o Cosmos

Compostas por casas simples, algumas de pau a pique, as comunidades Barra do Brumado e Bananal, abrigam cerca de sessenta famílias, trinta para cada. Estas comunidades compõem duas das 743 comunidades quilombolas (aproximadamente 2 milhões de pessoas) do país, segundo dados da Secretaria de Gestão Participativa do Governo. Embora com um número de famílias igual, Barra apresenta uma margem de trezentos moradores, enquanto Bananal não chega a ter nem cem moradores ali estabelecidos. Isto porque muitos quilombolas de ambas as comunidades migraram para outras regiões em busca de trabalho, como São Paulo, principalmente as mulheres, tanto que se vêem mais rapazes do que moças pela aldeia.
“Só que elas casam com o pessoal daqui mesmo”, Rafael, faz essa ressalva, que apesar de morarem longe, as mulheres preservam os casamentos na terra natal. Estes casamentos não acontecem necessariamente entre os dois quilombos que, de acordo com o líder, também se casam com pessoas de Jiló, comunidade vizinha. “As etnias são misturadas e já houve muitos casamentos”, atesta o líder. Essa evasão principalmente para São Paulo foi muito propiciada pela inundação de Riacho das Pedras na década de 80, reflexo de uma realidade que até hoje se apresenta difícil para os quilombolas.
“A maioria dos jovens termina o ensino médio e acaba indo trabalhar na roça. Você não tem oportunidade de cursos aqui no nosso município e de emprego também. Acho que deveria ter mais cursos para os nossos jovens fazerem, e meios de estudar e formar também. Porque é um sacrifício a gente sair daqui, se deslocar 15 km pra terminar o ensino médio e depois ir trabalhar na roça”, conta a professora Sandra Santos. Seu irmão, por exemplo, Edson Santos, concluiu o segundo grau, mas não tem vontade de ir pra longe de sua comunidade para trabalhar e estudar.
- Edson, e você pensa em fazer o que?
- Não sei. Estou parado ainda. - respondeu Edson, o irmão de Sandra, sem perspectivas.
Das sessenta famílias de Barra do Brumado, 50% dos quilombolas são analfabetos, informações da pesquisadora Claudia Silva, coordenadora do Centro de Estudo Euclides da Cunha da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e do Centro de Estudos dos Povos Afro-índio americanos (CEPAIA).
“Deveria ter cursos, alguns meios de ganhar dinheiro aqui mesmo. Tem muita gente que está em São Paulo, muitos primos, que foram pra trabalhar no pesado mesmo”, diz a professora que não pensa em sair de suas terras. Além de dar aulas na educação infantil em Barra, Sandra também trabalha com agricultura, "planto bastante verdura, faço hortas... Alface, couve, tempero, cheiro verde, abóbora”, feliz e digna, conta a professora, cheia de esperança, que mesmo tendo que atravessar desafios e superações de sua vida, conquistou seu lugar com muita luta, dedicação e amor ao que faz. “Meu maior sonho é que todos da comunidade tenham emprego”, conta a professora.

A maioria dos quilombolas trabalha com agricultura de subsistência e artesanato. “Cultivamos de tudo um pouco, e produzimos um pouco de feijão, milho, mandioca, hortaliças, frutas... Arroz não se cultiva mais na região porque foi a parte que a barragem tomou. Aquilo que é excesso, vendemos, mas plantamos mesmo para o consumo”, afirma Seu Carmo. Os idosos sobrevivem com a aposentadoria rural do Governo e “não há emprego porque a única fonte de emprego é o município, a prefeitura. A comunidade quase não tem empregado na prefeitura”, conta o líder Carmo. São poucos os que trabalham em Rio de Contas, quando a grande maioria migrou mesmo para São Paulo. Atualmente a migração diminuiu para a capital paulista. Cidades como Vitória da Conquista, Ilhéus e Salvador, atualmente têm estudantes quilombolas que estão cursando o ensino superior. Na UFBA de Salvador, tem dois quilombolas estudando um no curso de medicina e outro no de administração. Em Conquista, têm estudantes de nutrição e enfermagem, ao mesmo tempo em que outros fazem cursinho. “Mas é difícil pros pais daqui manter um filho lá. E lá também não é fácil. Os que estão em Conquista mesmo, os pais estão dando duro mesmo para mantê-los lá”, conta a professora Sandra. Na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), de Ilhéus, uma aprovação recente no vestibular fez ingressar outro quilombola nos estudos de Biomedicina.
O quilombo, além dessas alegrias que estão sendo conquistadas, já nesse ano terá médicos formados em Cuba, da Escola Latino-Americana de Medicina. Na Argentina também existem estudantes que fazem direito e administração. “Estamos saindo e mostrando que somos capazes, com gente estudando em várias áreas”, conta alegre o Seu Carmo.
A noite já caia tarde, quando a conversa foi chegando ao final. O líder Carmo, homem vívido de boa fé, já bocejava com intervalos no seu discurso. Era muita coisa na realidade de quilombo para se costurar. Mas a curiosidade não dava trégua, quando se perguntou se ele já conhecia alguma comunidade da África. Respondeu que ainda não, demonstrando interesse em visitar países do continente, apesar de promessas políticas não cumpridas. Diz também que “temos alguns contatos no nacional pelos encontros e também com alguns quilombos daqui da Chapada Diamantina. Mas a gente não conhece comunidades como em Bom Jesus da Lapa, e não temos contatos em lugares mais distantes”.

DO COTIDIANO DIRETAMENTE PARA O COSMOS

O Sol da quarta-feira daquele abril, não amanheceu radioso. Nuvens cinzas carregavam o horizonte da paisagem, permanecendo o espetáculo da natureza, dentre muito vento no  balançar de árvores. O dia acordava frio no quilombo, mas quando foi maturando perto do meio dia, o Sol se apresentava por entres espaços de céu azul, límpido no estio. Depois do almoço feito no fogão à lenha, a calçada convidava a atravessar o tempo, sentando-se sobre ela.
E dentre sonhos de criança se figurando, a bola passeava na brincadeira. As marias-chiquinhas das meninas rodopiavam correndo pelo ar, o recreio do colégio era correr no mato e brincar, brincar e brincar, sob um cenário de montanhas e copas verdes. Aquelas risadas de meninos se espalhavam dentre um ruído de vento, que parecia cantar.

Já era chegado perto das 16 horas, momento em que começava todo dia o futebol do quilombo. Num grande campo, rodeado por árvores altas e vistosas, 16 jogadores se dividiam em dois times para começar a partida.
Próprios de estaturas médias e altas, alongadas pela suave musculatura à vista, os moços próprios de um futebol veloz e ativo, cometiam características de habilidade que exigiam mais vigor físico e condicionamento, do que artimanhas técnicas.
O pôr-do-sol caia rente a cerrados, acobreados pela luz alaranjada natural, era sinal de que o jogo chegava ao fim. No dia seguinte, a revanche do time perdedor.

“O que eu gosto mais é de jogar bola”, diz o jovem Rafael Silva. Com 21 anos, está hoje na sétima série e admite que não quer fazer vestibular porque não gosta de estudar muito, “estudar eu estudo, mas não é direto não”. Ele nasceu em Salvador, retornando para o quilombo aos 4 anos de idade. Já crescido, aos 13, retornou para a capital junto com a mãe e o outro irmão Gabriel, morando lá por mais quatro anos. Infelizmente acabou por perder sua mãe, falecida devido à doença de chagas. “Na época eu tinha 17, eu ainda estava morando lá. Ai eu vim pra cá, a gente enterrou ela aqui, e até hoje estou ai”, disse o rapaz. O jovem Rafael, como seu irmão, Daniel, moram com o tio Carmo e hoje seguem, os três, a vida simples que rege o cotidiano nessa aldeia quilombola. Rafael afirma que tem vontade de morar novamente em Salvador, cidade que tem muitos amigos e onde aprendeu a dançar o forró pé-de-serra.  “Um forrozim pé de serra é bom, mas danço tudo. Saio pra festa em Rio de Contas, Mato Grosso, Jiló, Livramento”, ao afirmar que também sabe dançar arrocha, “mas não muito, agora parou um pouco mais por aqui”, conta. Ele não chegou a conhecer o pai, e embora tendo muita saudade da mãe, não pensa em se casar, “porque dá muito trabalho”, disse com convicção.
- E você quer fazer o que?
- Ficar curtindo aí, a vida de solteiro, foi a resposta que deu. Nada mais condizente com o contexto de sua geração.

O jovem rapaz fita o horizonte seco do quilombo, devido à escassez das chuvas, dizendo que se pudesse fazer um curso, queria ser astrônomo, afirmando sempre ter tido interesse pelo ofício da ciência, quando mostrado na televisão.
- E você ia ter coragem de ir pro espaço?
- Quando a professora falava assim de espaço e de foguete, eu falava que ia pegar um botijão de gás, colocar nas costas e subir. Aí a professora falava, ‘ah, mas você vai subir, vai mesmo’. E eu queria subir, conta Rafael Silva, pausado com ares de humor, de sorriso largo e entre risadas.
Certamente, não somente Rafael, mas as pessoas do quilombo devem ter ao menos, em algum momento da vida, alçado o olhar para o magnífico e iluminado céu noturno da região. Os vôos sobre aqueles ares rurais se davam por inúmeras realidades avizinhadas, dentre signos e símbolos diversos, que na imponente noite estrelada, ressoava mensagens sublimes. Um raio de simplicidade, amizade e compaixão corta aquelas terras por entre rios e depressões. Por vezes, esquecidos num deserto seco e pouco produtivo, os quilombos (sobre)vivem, muito carentes por falta de atenção e cidadania.
Mas muito ricos em cor, os quilombolas são seres humanos latentes e vivos, cheios de sentimento que estendem o braço à próxima mão. Saltam aos olhos mudos, e sem dar um pio, atravessam o tempo, e no espaço, o botijão de gás se transforma mesmo em foguete: espalhou na dimensão que quilombo sente dor, mas é na terra que germina a família, a sua raiz de amor.


                                                                      ~

                                                                     FIM
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