Capítulo III

Do Sertão de Cima e do Sertão do Lado

DO SERTÃO DE CIMA

A estrada de barro batido que leva à Mato Grosso não passou despercebida com suas belas paisagens, dentre montanhas e neblinas, céu azul e um sol ameno a se refletir no horizonte. O rumo para o “Sertão de Cima”, como é conhecida a localização do povoado dos portugueses, beirando dois mil habitantes, foi conduzido pelas boas companhias das guiadas dos quilombolas Edson e Julimar.
 A circulação dos dois amigos quilombolas pela vila de Mato Grosso, bem como a relação que têm com as pessoas de lá, foram providenciais até se chegar ao miolo da tradicional família Mafra. Próprios dum lugar simples no aconchego do clima frio deste outono do Sertão de Cima, o povo de Mato Grosso, duma simplicidade e brandura notáveis abriga-se num lugar regado a muito café, principal atividade econômica da região hoje.
 

“Pelo que trabalharam, com a erosão que é feita por aí, é muita coisa. É coisa feia que você vê... Eu joguei uma pedra e não escutei o barulho da pedra, de como ela rolou na água, de tão profundo”, com vivacidade relembra Seu Albertino Mafra, sobre o lajeado de mármore encontrado num terreno da família e aberto por uma bomba, resultante dos tempos de garimpo. Seu pai foi pedreiro e ele, lavrador, nas plantações de milho, feijão e batatinha. Próprio de uma família extensa e ao lado de filhas, netos e nora, Seu Albertino conta que “vinha aquele pessoal de fora garimpar, e essas terras todas aí têm uns terrenos com umas erosões feias. A gente olha assim, aquela coisa esquisita mesmo, tudo a procura de ouro, muito ouro”. Estudos confirmam que a freguesia de Santo Antônio de Mato Grosso realmente foi um dos lugares mais prósperos da região na produção aurífera, muito rica em ouro de aluvião, aquele que se encontra nas margens e leito dos rios.
Embora carregue no sangue a herança genética de uma descendência, hoje, o povo de Mato Grosso já não respira mais ares de um passado minerador. Entretanto, ainda que casamentos aconteçam com negros de cidades próximas como em Rio de Contas, ou outras distantes como São Paulo, ainda não houve casamento com os vizinhos quilombolas (até 2010). “É um pessoal que conhece pouco da vida aqui, né. Eles vêm mais em período de festa, forrozinho no salão. A gente vai lá também”, conta seu Albertino ao lado dos ouvidos atentos da família. Sua nora, Jucélia Silva Mafra, de 25 anos, interviu ao afirmar ter um ótimo relacionamento com os negros do quilombo. A mesma mostra que houve muita especulação pela mídia, ao citar uma reportagem feita pelo SBT, em que  um preconceito persistente foi retratrado entre as duas comunidades, “um absurdo, como se Barra e Mato Grosso não se misturassem”. E ela atesta, “tive colegas em Rio de Contas e nos dávamos muito bem”. A estudante Jéssica Mafra de Oliveira, 17 anos, neta de Seu Albertino, disse que foi às comunidades de Barra e Bananal com o colégio para transmitir aprendizados às aldeias quilombolas, por meio da feira de ciências.
“Eles contaram suas histórias de vida e fomos muito bem recebidos lá”, declarou.
- Já houve algum casamento entre brancos e negros? A pergunta, às vezes soando inconveniente, era mesmo necessária para clarear algumas questões.
- Já. Eu tenho duas primas casadas com negros, disse a filha de Albertino, Maria de Aguiar Cunha Mafra, 38 anos.

Ao demonstrar miscigenação, Albertino afirma que sua bisavó tinha descendência negra, “no passado fizeram aquela crítica, aquela rivalidade, como se tivesse um preconceito. Não têm que ter essa rivalidade, eles que têm mais. Temos tantos amigos com o pessoal lá embaixo”, conta referindo-se aos quilombos, e completa, “aquela coisa do passado, dos tempos passados, isso vai acabando... Tem que pensar que todo mundo é igual”, sob um sotaque arrastado de homem da terra, Albertino Mafra não nega a história, e busca um sentido de igualdade entre os homens.

DO SERTÃO DO LADO

O líder Carmo afirma que não houve miscigenação entre as duas comunidades devido ao fato de que “os negros não podiam dormir na vila dos brancos, porque não tinham o direito. Todo dia subiam e desciam oito quilômetros de serra pra dormir aqui na região, onde ficam nossas comunidades. Era uma lei, porque diziam que os negros eram impuros e podia manchar a raça branca. O negro era considerado animal de trabalho”, disse referindo-se à escravidão.
Ele admite que não houve resistência negra devido à uma forte segregação, ao ponto do negro aceitar por muito tempo que “aquilo era a realidade. A gente viveu num período aqui muito ruim”, conta o quilombola. Porém, “o que fez com que o preconceito fosse quebrado, dizem que até prejudicou muito o negro, as culturas, mas ajudou muito também nessa mistura”, foi a criação da Paróquia e a nova Diocese na cidade vizinha de Nossa Senhora do Livramento.
Na década de 1970, a religião e a chegada do Padre Carlos, foram elementos decisivos na aproximação para integrar negros e brancos, segundo o líder quilombola. “Tinha uma dificuldade muito grande entre as comunidades, na década de 70, ainda existia uma dificuldade. Mas com essa formação das comunidades na organização das paróquias e a chegada do padre, veio pra quebrar os preconceitos. Ele não tinha preconceito nem com pobre, nem com branco, nem com negro, então ele abraçava a todos”, relata com entusiasmo o líder. E afirma ainda que não houve casamentos com pessoas de Mato Grosso por uma questão de oportunidade. “Não vejo isso como uma regra não. O que faltou foi oportunidade. No passado isso não acontecia não, com certeza não podia. Mas agora já podem as relações amorosas. Já aconteceu de namorar, mas de casar não. O casamento não aconteceu mesmo não”, e atesta convicto que até hoje (2010) não aconteceu que casamento entre pessoas de Barra, Bananal e Riacho das Pedras com as de Mato Grosso.
Seu Carmo confirma que existe mesmo uma boa relação com os descendentes portugueses. “É. Porque civilizou, a escola também ajudou nesse processo. Mas também se a gente quer manter uma relação estranha, assim de preconceito, tem até vergonha de apresentar isso na sociedade que a gente vive hoje. Se alguém tem isso rancoroso guardado dentro do corpo, vai ter vergonha de apresentar ao público”, ao reconhecer a existência dos instrumentos jurídicos para denunciar casos de discriminação. O líder reconhece que o preconceito não acabou, “quem tinha, continua tendo, mesmo que não demonstre, tem vergonha de se manifestar”, e completa, “minha mensagem é que todo mundo se espelhe no Evangelho, que não tem preconceito, e veja que somos todos irmãos, pois Jesus Cristo é único para todos”.


Para o líder, ainda existe uma discriminação muito forte por parte das autoridades brasileiras. “O preconceito existe na própria política. Até nos dias de hoje, ainda é grande o preconceito do poder público, os quilombos eram desprezados totalmente. Não somos vistos como sociedade ainda, cidadãos desse país aí”, ao afirmar que a política até hoje carrega vestígios de um preconceito étnico sofrido pelos negros. A professora e funcionária pública, Sandra Aparecida Augusto Santos, de 30 anos, concorda com o líder. “Tem tanto benefício que vai pra outros lugares e pra gente não. Um exemplo muito claro disso são essas casas populares que foram para outras comunidades e pra nós não. Por quê? Eu falo bem assim, ‘pra gente nada dá certo, não sei por que’, quando pensa que está indo, está voltando. Projetos? Existem muitos pra gente, mas nada dá certo, não vai”, lamenta a quilombola. 
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