Capítulo V

Voz de experiência e Cultura de Quilombo

VOZ DE EXPERIÊNCIA

Ao chegar na casa de Dona Claudina Silva (in memoriam), a integrante mais madura da comunidade, com 92 anos de vida (2010), Rafael se adentrava familiar à casinha simples, mas morada de um lugar vívido, donde as paredes carregavam sentimentos, absorvidos anos à fio na muda forma de ser, sobre pálidas tintas brancas de cal. Um cheiro de chuva e terra molhada ressaíam com ventos vindos da janela do fundo até a porta da casa. Não se casou e nem teve filhos, morando com uma irmã, Dona Claudina, a descosturar a barra de um tecido rosa com a faca, balançava a cabeça vagarosamente, negando viagem ao passado. “Que história?”, ao levantar o olhar, e continuava, “não tem história não...”, abaixava a cabeça, voltando os olhos para o pano desfiado, “tem não”, dizia evitando mexer nas linhas da vida.
Aos poucos foi cedendo conversa, dizendo que tem muitos amigos em Mato Grosso, “graças a Deus não temos problemas, nos damos bem e temos muito respeito por eles”. Dedicados muitos anos às plantações, hoje, Claudina enfrenta dificuldades com a visão, “que a saúde tá pouca”, soltava cabisbaixa. Um abraço macio fazia compreender a vida e posição daquela senhora. Seu Carmo confirmou que os mais velhos não gostavam de falar do passado porque se envergonhavam, mudavam de assunto e preferiam deixar que o tempo apagasse. Certamente não teriam sido anos de dias excelentes, as Secas e a Fome no Sertão poderiam ter feito secar a fonte da voz, ressequida por sofrimento, fome, abandono.



CULTURA DE QUILOMBO

“Que aí mataram tudo, matou a cultura, matou a religião afro, matou tudo ao chegar aqui. O candomblé foi morto totalmente. O povo hoje não sabe, não conhece as origens”, relata. A proibição de batuques, ou outra qualquer vozeria depois do toque de recolher, era uma das medidas adotadas para coibir as reuniões com dança e música dos cativos, que só se reuniam na calada da noite em outras roças. Eles tinham acesso livre aos arredores e na vila, pois vendiam produtos para seus senhores. A ocupação de lavrador era predominante, responsável pelas plantações de algodão, principal atividade agrícola depois da decadência aurífera, e na produção de alimentos (mandioca, cana-de-açúcar, milho, feijão etc), na medida em que os cativos garimpeiros foram se esvaindo ao longo do século XIX.
Essas informações, da historiadora Kátia Lorena Novaes Almeida, em “Alforrias em Rio de Contas – Bahia, século XIX”, da UFBA, mostram como, de fato, a cultura africana foi dizimada ao longo do colonialismo.
O Reisado e a Recomendação das Almas, são tradições católicas que foram aderidas à cultura do quilombo, até hoje bastante praticadas pelas comunidades.

A Igreja de São Sebastião foi construída no século XIX na aldeia. Depois, em 1925 foi construída outra Igreja, tendo passado por ampliação e reforma a ser inaugurada onde é hoje, em maio de 1988, no centenário da abolição da escravatura.

Antes de existir a Igreja do século XIX, os cultos eram realizados na casa de Isidro José da Silva, o precursor descendente do quilombo, segundo relata o líder Seu Carmo.



São Sebastião, foi o santo escolhido como padroeiro, porque “antigamente os negros garimpavam descalços e por isso sofriam convulsões, que eram entendidas como uma espécie de peste e doença ruim, que não gostavam nem de falar o nome”, em relato seu Carmo frisa a razão da escolha do padroeiro da comunidade, invocado contra a “peste, fome, a guerra, doenças contagiosas e males repentinos”.
Esses elementos culturais não impediram, entretanto, que algumas heranças africanas tenham permanecido ao longo de muito anos, como as inselências: cantos piedosos decorados e usados no velório de parentes falecidos. “Os negros não sabiam ler, então tinham que decorar para seu aprendizado”, explica o líder. Os versos, as cantigas de roda, samba, sapateado e o Bendengó – samba dançado aos pares numa roda – são tradições que revelam traços africanos ainda presentes. Outras marcas culturais, como o Artesanato do Quilombo, os encontros de família e as festas juninas também são marcas culturais existentes. No entanto, “com a modernidade, aparece o teclado, o som, então vai misturando e acabando um pouco as tradições”, justifica o líder pela existência da diluição das culturas antigas por meio da tecnologia, no caso da música.


TELEVISÃO NO ARRAIAL: SINAL DE MUDANÇA E RESGATES

A luz elétrica já chegou tarde às comunidades quilombolas no ano de 1996, quando puderam conhecer esse aparelho colorido e que fala num universo de múltiplas mensagens, a televisão. “É um ponto positivo para quem sabe usar, mas é ponto muito negativo para aquele que não sabe”, conta o senhor Carmo a respeito da chegada da Televisão, que atrelada à tecnologia de informação, todos os encargos globalizados do mundo moderno, na massificação da cultura, são disseminados. Para o quilombola, a televisão tem representado um meio de extinguir as tradições e os valores herdados. “A gente está tentando buscar dentro das comunidades tradicionais esse resgate ou essa reconstrução dos valores, para nos atualizar nos dias de hoje. A televisão chega e derruba um bocado de coisa”, conta Carmo preocupado com as novas gerações.
Por outro lado, o mesmo líder critica a mídia, quando ao longo dos anos têm exibido no histórico das representações sócio-culturais de símbolos e personagens, através principalmente das novelas, uma forma de discriminação. “A televisão tem muitos pontos positivos, mas tem muitos pontos negativos. O negro só serve para ser empregado do patrão, cozinheira, babá. Essa discriminação se mostra como um ponto muito fraco”, admite. Em sua opinião, a televisão é entendida como a destruição das famílias e da sociedade, quando as pessoas não sabem encarar o veículo, “e seguindo o que a televisão ensina, a família se acaba”, conclui.


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